TRANSFORMAÇÃO ALIMENTAR
A fábrica dos pimentos, como era conhecida em toda a cidade de Elvas, funcionava num velho pavilhão industrial na periferia da cidade, era uma fábrica apenas com actividade sazonal e destinava-se exclusivamente à transformação do pimento vermelho. Era uma empresa de reduzidas dimensões e oferecia precárias condições de trabalho, onde exerci durante algum tempo a minha actividade laboral mas há mais de 20 anos, então não era ainda usual utilizar-se como hoje em dia, a designação de fábrica de transformação alimentar, para nos referirmos a esse tipo de empresa.
Como já tive oportunidade de referir na minha autobiografia, foi o local de trabalho onde menos se respeitavam os direitos dos trabalhadores, nem as suas condições de trabalho, não existiam quaisquer normas de segurança ou de higiene alimentar. A fábrica era basicamente uma pequena empresa familiar, constituída por uma sociedade entre duas pessoas da mesma família e que eram os próprios a exercer todas as funções de gestão da empresa. Além dessas, cada um deles acumulava ainda outra função, a um competia a chefia dos trabalhadores, e toda a coordenação das actividades a desempenhar. O outro proprietário exercia também a função de único motorista da empresa.
A seu cargo, estava o transporte dos pimentos que entravam ou saíam da fábrica e de funcionários que tivessem de exercer funções nas estufas da fábrica, que se situavam fora do centro urbano. A empresa dispunha, para além desses dois membros, de um número reduzido de funcionários, que não chegavam a uma dezena. Nenhum funcionário ocupava um posto de relevância em relação aos demais, éramos todos polivalentes, tínhamos a nosso cargo diversas tarefas que executávamos segundo as necessidades de momento e consoante as ordens que recebíamos do proprietário. A única excepção era com o manuseamento do equipamento de esterilização dos pimentos embalados. A necessidade de vigilância permanente fez com que o proprietário atribuísse o manuseamento desse equipamento a um só funcionário. Era de extrema importância manter uma temperatura constante, já que qualquer pequena alteração da temperatura poria em risco a conservação dos pimentos, se o processo de vácuo, que era o resultado pretendido, não fosse bem sucedido. Caso esse funcionário faltasse ao trabalho ou em caso de ser requerido para outra função, era substituído apenas pelo proprietário da fábrica. Éramos tão poucos funcionários que só mesmo a entreajuda no trabalho em equipa e a polivalência permitia o sucesso no funcionamento da fábrica e na sua produtividade. Estas circunstâncias, faziam com que nos fosse impossível almejar ascender hierarquicamente nesta empresa. Tal como eu, e porque era comentado entre nós, também o resto de funcionários tinham plena consciência de que o posto de maior categoria a que eventualmente se poderia chegar, pois era o que todos acreditavam, seria o de manobramento da máquina de esterilização. Devido às precárias condições económicas, só mesmo a necessidade de um salário ao fim do mês, nos mantinha aí a trabalhar, não a possibilidade de ascensão a um posto de chefia ou de gerência, que sabíamos, nos estava completamente vedado!
A fábrica era tão básica e rudimentar, que apenas existiam três equipamentos eléctricos utilizados na transformação dos pimentos, não existia uma linha de montagem e todo o trabalho necessário para que a matéria prima chegasse até às máquinas, era feito manualmente e indistintamente por homens e mulheres até mesmo o descarregamento das sacas de 30 kg de pimentos das camionetas, como polivalentes, consoante a necessidade, assim nos eram atribuídas diversas funções.
Numa dessas máquinas, a de triturar, era habitualmente onde eu exercia a minha função, sem nunca antes ter operado com outra máquina similar, nem ter recebido qualquer formação prévia. Foi-me destinada a função de triturar os pimentos numa máquina em muito similar às antigas e pequenas máquinas domésticas a manivela, para triturar alimentos.
Tinha como única ajuda a força de braços para levantar as caixas do chão e despejar os pimentos dentro da abertura da máquina que ficava à altura da cara e de um pedaço de madeira com o qual eu tinha de retirar os pimentos que ficavam acumulados nas partes laterais da máquina para que pudessem também ser triturados.
Como resultado dessa operação obtinha-se o que se conhece como massa de pimentão e que era depois vendido a granel para as antigas mercearias e adquirido a peso pelos consumidores. Não só a mim me competia a função de operar com essa máquina, porque se fosse necessário o desempenho de uma outra função, outro colega ocupava esse posto.
Havia um bom clima de camaradagem e ajuda mútua entre todos os funcionários, talvez porque éramos poucos e conhecíamo-nos quase todos, a boa disposição e o temperamento alegre de algumas colegas animava-nos e ajudava-nos a suportar com mais resignação aquela situação. O tratamento que tínhamos por parte do patrão deixava muito a desejar, era uma pessoa pouco sensibilizada para a dificuldade de execução de algumas tarefas, exigindo tanto esforço físico a um homem como a uma rapariga de 15 ou 16 anos, por exemplo.
As condições de segurança não existiam, a máquina com que eu trabalhava podia ser extremamente perigosa, pela necessidade constante de introduzir o pedaço de madeira, tinha de ter muito cuidado para não tocar no mecanismo de triturar, a madeira poderia partir-se ou encravar a máquina e foi o que aconteceu a um colega que um dia me estava a substituir. Por falta de prática introduziu demais o pedaço de madeira e encravou a máquina, para a tentar retirar, introduziu a mão dentro da máquina e se por acaso a madeira se tivesse partido poderia ter ficado sem a mão ou sem o braço. A máquina funcionava com um motor lateral, exactamente onde as domésticas têm a manivela, o cabo eléctrico pendia do motor e atravessava parte do chão até à parede mais próxima onde estava ligada a uma tomada de corrente eléctrica e o mesmo se passava com o resto das máquinas. O risco de queda era constante, porque ao carregar e transportar as caixas de pimentos os cabos no chão ficavam fora do alcance da vista. Que eu me recorde, nunca por esse motivo se deu alguma queda, mas no descarregamento das camionetas o desequilíbrio provocado pelo peso das sacas fez com que duas das minhas colegas tivessem caído e ficado bastante magoadas.
Não existia qualquer tipo de equipamento de protecção, de vestuário adequado ou normas, de forma a preservar a higiene e a qualidade do produto. Creio que a atribuição de batas para protecção da nossa roupa, de toucas para a preservação da higiene alimentar e umas luvas para proteger as mãos dos fluidos dos pimentos, seria o equipamento mínimo indispensável para a protecção individual.
Na primeira semana de trabalho, os pimentos eram talhados para se retirarem as sementes, mas foi-nos dada a ordem de parar com essa prática porque como éramos poucos, esse processo atrasava muito o trabalho e realmente era grande a quantidade de pimentos a chegar constantemente à fabrica. Sem lavagem prévia e tal como chegavam da horta eram processados, dos que se encontravam em bom estado, uma parte era assada num forno eléctrico, um dos três equipamentos existentes na fábrica, outra parte era transportada para uns velhos edifícios fora da cidade, que eram utilizados como estufas de secagem. Não recordo já se eram dois ou três, mas recordo que eram bem velhos e que cada um estava dividido em bastantes andares, feitos em madeira e de muito reduzida altura, tanto que só nos podíamos deslocar de joelhos e onde tínhamos de espalhar os pimentos com preceito, já que não podiam ficar sobrepostos, para facilitar a secagem que durava cerca de 3 meses mas entretanto ainda lá tínhamos de regressar ao fim de 1 mês e meio para dar a volta aos pimentos. Esses pimentos, depois de secos, eram transformados em pó e vendidos comercialmente com a designação de Colorau, pimentão-doce ou pimentão flor como era aí designado então pelas pessoas mais idosas.
Os pimentos que estivessem em piores condições, ou que já estivessem mesmo a entrar em estado de decomposição eram os que se trituravam para fazer a massa de pimentão e armazenado num depósito, construído num dos cantos do pavilhão, mais ou menos um metro abaixo do nível do chão e com um muro circundante sensivelmente também com um metro de altura, onde tinha que despejar os pesados alguidares cheios da massa de pimentos, depósito esse feito em cimento e sem qualquer tipo de revestimento protector, assim como o chão e paredes. Creio que pelo menos com o depósito deveria ter havido a preocupação de revesti-lo, nem que fosse com azulejos, à semelhança com o que se faz nas piscinas.
A exigência de correctos processos de manipulação e transformação de alimentos, obriga agora a uma grande fiscalização no sector das indústrias alimentares e da restauração, naquela época, embora já se efectuassem fiscalizações, a maior parte dos empresários sabia com antecedência quando as suas empresas iam ser sujeitas a essas fiscalizações, que não eram tanto pela preocupação das condições em que se processavam os alimentos, mas para controlar as actividades da empresa e a legalidade de todas essas actividades. Quando acontecia a empresa ter conhecimento que ia ser visitada pela fiscalização, os funcionários que não tivessem contrato de trabalho, como eu e outros mais, éramos dispensados de trabalhar e convidados a ficar em casa nesse dia.
Embora todos estivéssemos conscientes das precárias condições de trabalho e entre nós fosse hábito criticar a situação, ninguém se atrevia a reclamar nem exigir nada à entidade patronal ou a qualquer outra instituição, éramos todos muito jovens, não havia ainda uma consciência muito acentuada sobre os nossos direitos como trabalhadores, mas sabíamos que exigir direitos, significaria a perda do posto de trabalho.
Há 25 anos não era prática comum a reciclagem e a verdade é desde os primeiros dias, em que se tiraram as sementes aos pimentos e que foram depois directamente deitadas no lixo, naquela fábrica pouco havia para reciclar, as sacas de serapilheira onde se transportavam os pimentos eram usadas tantas vezes quantas permitisse o seu estado de conservação.
Havia já, no entanto, por parte do empresário uma enorme preocupação em economizar e não permitir desperdícios inúteis, por assim ser, todos os pimentos que estivessem num mais elevado processo de decomposição eram os primeiros a serem transformados em massa de pimentão, os fluidos da decomposição que escorriam das sacas ou caixas, produziam-nos por vezes reacções alérgicas nas mãos e um cheiro nauseabundo constante nas roupas, que quando eu chegava a casa o meu filho mais novo escondia-se atrás dum sofá sem me querer beijar porque dizia que eu cheirava muito mal.
Como se pode compreender o meu comentário no início deste último parágrafo é de pura ironia, mas descreve a realidade! Até há uns anos atrás era prática comum em muitas empresas de transformação alimentar o aproveitamento de alimentos deteriorados para a confecção de alguns produtos, como por exemplo sumos, compotas, polpas, etc.
Estas práticas podem gerar indignação e revolta por não serem correctas e não sei até que ponto podiam ou podem, se é que ainda existem, pôr em perigo a saúde pública, mas não era mais do que um processo de reciclagem, embora incorrecto! Não se tinham em conta os riscos para a saúde pública, apenas o prejuízo resultante da perda de matéria-prima.
Na impossibilidade de aprofundar o tema da reciclagem com base nas actividades desta fábrica, como me foi sugerido, faço no entanto de seguida, um pequeno desenvolvimento do tema.
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